Fui assistir ao filme "Preciosa - uma história de esperança", candidato ao Oscar com seis indicações. O filme é forte, tenso e até aflitivo em muitos momentos. A história se passa no Harlem, bairro de Manhattan, em Nova York, admirado pela força de sua música, mas temido pela segregação racial e os índices de violência. O público permaneceu em um silêncio nervoso a maior parte do tempo. Um silêncio que parecia indagar se na vida real seria possível sobreviver em meio a tanto desamparo.
Ali, na parte mais pobre e mais rude do Harlem, a adolescente Claireece "Precious" Jones, de 16 anos, sofre as mais diversas privações e as mais perversas humilhações. Abusada pela mãe, violentada pelo pai e grávida do segundo filho, ela acaba rejeitada pela escola tradicional, mas consegue vaga em uma escola alternativa que garante sua proteção e lhe ensina a ler, a escrever e a viver.
Histórias semelhantes ao filme são vividas, na rotina das cidades, no Brasil e em outras partes do mundo. A miséria está ao nosso lado e este fato exige uma reflexão mais profunda sobre a situação das famílias socialmente desprotegidas, que atravessam suas vidas mergulhadas na indigência.
Ser miserável ou indigente é "morrer" aos poucos todos os dias. A pobreza mata. A pobreza esfacela famílias. Em moradias marcadas pela pobreza é possível perceber até uma certa banalização da morte. Para quem "morre" um pouco todos os dias, o fim definitivo, infelizmente, pode ser encarado como desdobramento do cotidiano.
Um marido que espanca sua mulher ou companheira, "morre" como marido. Se uma mãe manda a filha para a exploração sexual, ela "morrerá" como mãe. A mãe que deixa de levar o filho à escola, porque pensa que ele poderá ser mais útil à família trabalhando nas ruas ou em atividades irregulares, também "morre" como mãe, porque está comprometendo o futuro do filho. E um pai que abusa sexualmente de seus filhos? Este "morre" como pai, definitivamente.
São essas "mortes" diárias que vão construindo e consolidando cada vez mais miséria e mais pobreza.
No filme, tudo isso fica muito mais evidente, mesmo para alguém, como eu, que trabalha como assistente social há mais de 16 anos e convive com personagens reais que se encaixam perfeitamente nesta história de ficção. É hora de banir a miséria da história brasileira. Não podemos e nem temos mais condições éticas de apenas fazer a gestão diária da pobreza. Precisamos dar um salto e dizer ao país que não aceitaremos que a indigência e a miséria passem de geração para geração, como heranças macabras.
Se for feita a aliança da educação com a proteção social será possível acabar com os "assassinatos simbólicos" que acontecem nas famílias em conseqüência da pobreza. O caminho para mudar esta realidade é a escola. É lá, sem dúvida, que se fará uma revolução na vida das famílias em desconstrução.
A escola deve ensinar, mas também proteger.
Além de aplicar provas e cobrar frequência, é preciso que a instituição observe com atenção as reais condições de vida de seus alunos e que passe a construir soluções por meio das políticas públicas de saúde, assistência social, habitação, cultura e outras tantas.
O Brasil conseguiu, com muito esforço, praticamente universalizar a entrada das crianças na educação básica. Agora, essa escola precisa ter as responsabilidades ampliadas para proteger as crianças e suas famílias. Temos cerca de 169 mil escolas de educação básica no país. Se cada uma delas for referência em seu território e tiver um projeto coletivo de superação da pobreza e da desigualdade, será possível construir outra dinâmica para o viver no Brasil.
Um país como o nosso pode, e deve, ter uma escola que agregue educação e proteção social para salvar vidas, vínculos familiares e comunitários.
Uma escola com professores, assistentes sociais, sociólogos, psicólogos e até mesmo arquitetos para garantir melhorias nas precárias moradias dos alunos e de suas famílias.
Neste ano, quando os principais problemas do país serão discutidos no debate eleitoral, podemos e devemos assumir o compromisso de melhorar nosso modelo de educação. Educação com proteção social é possível. É urgente.
Se não estivermos convictos de que vivemos uma imensa urgência social, nossos braços se cruzarão naturalmente. Acontece que tem gente querendo viver. E o Brasil precisa agir.
Texto de Marcelo Garcia, Secretário Executivo no Instituto CNA. Artigo publicado no Jornal O Globo de 08/03/2010.
Ali, na parte mais pobre e mais rude do Harlem, a adolescente Claireece "Precious" Jones, de 16 anos, sofre as mais diversas privações e as mais perversas humilhações. Abusada pela mãe, violentada pelo pai e grávida do segundo filho, ela acaba rejeitada pela escola tradicional, mas consegue vaga em uma escola alternativa que garante sua proteção e lhe ensina a ler, a escrever e a viver.
Histórias semelhantes ao filme são vividas, na rotina das cidades, no Brasil e em outras partes do mundo. A miséria está ao nosso lado e este fato exige uma reflexão mais profunda sobre a situação das famílias socialmente desprotegidas, que atravessam suas vidas mergulhadas na indigência.
Ser miserável ou indigente é "morrer" aos poucos todos os dias. A pobreza mata. A pobreza esfacela famílias. Em moradias marcadas pela pobreza é possível perceber até uma certa banalização da morte. Para quem "morre" um pouco todos os dias, o fim definitivo, infelizmente, pode ser encarado como desdobramento do cotidiano.
Um marido que espanca sua mulher ou companheira, "morre" como marido. Se uma mãe manda a filha para a exploração sexual, ela "morrerá" como mãe. A mãe que deixa de levar o filho à escola, porque pensa que ele poderá ser mais útil à família trabalhando nas ruas ou em atividades irregulares, também "morre" como mãe, porque está comprometendo o futuro do filho. E um pai que abusa sexualmente de seus filhos? Este "morre" como pai, definitivamente.
São essas "mortes" diárias que vão construindo e consolidando cada vez mais miséria e mais pobreza.
No filme, tudo isso fica muito mais evidente, mesmo para alguém, como eu, que trabalha como assistente social há mais de 16 anos e convive com personagens reais que se encaixam perfeitamente nesta história de ficção. É hora de banir a miséria da história brasileira. Não podemos e nem temos mais condições éticas de apenas fazer a gestão diária da pobreza. Precisamos dar um salto e dizer ao país que não aceitaremos que a indigência e a miséria passem de geração para geração, como heranças macabras.
Se for feita a aliança da educação com a proteção social será possível acabar com os "assassinatos simbólicos" que acontecem nas famílias em conseqüência da pobreza. O caminho para mudar esta realidade é a escola. É lá, sem dúvida, que se fará uma revolução na vida das famílias em desconstrução.
A escola deve ensinar, mas também proteger.
Além de aplicar provas e cobrar frequência, é preciso que a instituição observe com atenção as reais condições de vida de seus alunos e que passe a construir soluções por meio das políticas públicas de saúde, assistência social, habitação, cultura e outras tantas.
O Brasil conseguiu, com muito esforço, praticamente universalizar a entrada das crianças na educação básica. Agora, essa escola precisa ter as responsabilidades ampliadas para proteger as crianças e suas famílias. Temos cerca de 169 mil escolas de educação básica no país. Se cada uma delas for referência em seu território e tiver um projeto coletivo de superação da pobreza e da desigualdade, será possível construir outra dinâmica para o viver no Brasil.
Um país como o nosso pode, e deve, ter uma escola que agregue educação e proteção social para salvar vidas, vínculos familiares e comunitários.
Uma escola com professores, assistentes sociais, sociólogos, psicólogos e até mesmo arquitetos para garantir melhorias nas precárias moradias dos alunos e de suas famílias.
Neste ano, quando os principais problemas do país serão discutidos no debate eleitoral, podemos e devemos assumir o compromisso de melhorar nosso modelo de educação. Educação com proteção social é possível. É urgente.
Se não estivermos convictos de que vivemos uma imensa urgência social, nossos braços se cruzarão naturalmente. Acontece que tem gente querendo viver. E o Brasil precisa agir.
Texto de Marcelo Garcia, Secretário Executivo no Instituto CNA. Artigo publicado no Jornal O Globo de 08/03/2010.
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